Qual professor ou professora de Ciências e Biologia já não viveu aquele momento, durante o ano letivo, em que teve que trabalhar conteúdos que envolvem sexualidade? Reprodução, anatomia e fisiologia do sistema reprodutor humano, métodos contraceptivos e Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) fazem parte do currículo da nossa disciplina, mas o que poderia ser encarado como apenas mais um componente curricular a ser lecionado, por vezes pode se apresentar como um grande desafio no exercício da docência.
Sabemos que a adolescência caracteriza aquele período de mudanças. O corpo muda, a mente muda, os interesses mudam. O autoconhecimento e a manifestação dos desejos também costumam se fazer presentes nessa fase da vida. A minha primeira experiência em trabalhar tais conteúdos em sala de aula aconteceu no início da minha carreira em uma turma da 1ª série do Ensino Médio de uma escola particular. Lecionar tais assuntos para meninas e meninos com idades entre 15 e 16 anos foi algo desafiador e ao mesmo tempo gratificante.
Todo esse contexto de mudança biopsicossocial se fez presente nas referidas aulas mencionadas no parágrafo anterior. Ao lecionar tais conteúdos me deparei com um cenário atípico na rotina de uma sala de aula: estudantes concentrados, atentos às informações, participativos, fazendo perguntas. O sonho de qualquer docente ali se materializando. Cheguei a pensar, “eu poderia só dar aula desse assunto”.
No entanto, as perguntas elaboradas pelos jovens iam para além do conteúdo. As dúvidas, os questionamentos e as colocações feitas nessas aulas acenavam para meninos e meninas em busca de orientação para suas vivências presentes e/ou futuras. Surgiam nessas aulas perguntas relacionadas ao prazer, aos cuidados com o corpo, perguntas sobre orientação sexual e sobre as identidades de gênero. Em suma, as dúvidas e os interesses dos jovens sobre esse assunto estão para além da Biologia.
Nesse contexto, nos deparemos com o desafio de superar uma barreira historicamente construída. As primeiras tentativas de implementar as questões de gênero e sexualidade na educação brasileira se deram através da chamada Educação Sexual entre as décadas de 1920 e 1930. Na época os chamados “desvios sexuais” deixaram de ser considerados crime e passaram a ser considerados como doenças. O discurso dos defensores da implementação da Educação Sexual se baseava em pressupostos higienistas e eugênicos advogando que cabia à escola educar os jovens promovendo comportamentos sexuais “normais”. Sobre isso, é válido lembrar que até o ano de 1990 a homossexualidade ainda constava na lista de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). Já a transgeneridade só foi retirada em 2018.
Após essa onda, o debate sobre a Educação Sexual no Brasil só voltou à tona no início da década de 1960, porém por viés bem diferente. A chamada Segunda Onda da Educação Sexual no Brasil teve forte influência dos movimentos contracultura da época, da luta do Movimento Feminista, dos movimentos pela liberdade sexual, das lutas antirracistas e, na América Latina, das lutas contra regimes ditatoriais. No entanto, após o Golpe de 1964, a Ditadura Militar inibiu qualquer iniciativa de implementar na educação assuntos e questões relacionadas a gênero ou sexualidade. Sendo assim, ao longo da década de 1970 até meados de 1980, não há registros de atividades de Educação Sexual em escolas públicas e privadas no Brasil. O debate sobre o tema ficou limitado ao campo intelectual.
Somente no final de década de 1980 voltou-se a se discutir sobre implementar a Educação Sexual nas escolas brasileiras. E a motivação novamente veio do campo da saúde, porém, o problema agora era real: a chegada da AIDS no Brasil. Dessa forma, ao longo dos anos 1990 o discurso da Educação Sexual passou a ser educação como forma de prevenção.
Somente em 1997 o Brasil institucionalizou a Educação Sexual na legislação educacional. Com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e o fascículo do Tema Transversal “Orientação Sexual”, a recomendação foi que assuntos relacionados a gênero e sexualidade fossem trabalhados na Educação Básica perpassando todas as áreas do saber. O documento em questão é dividido em três eixos norteadores: “Corpo: matriz da sexualidade”; “Relações de gênero” e “Prevenção a Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS”. Na época da produção do documento as hoje chamadas Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) ainda eram chamadas de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST).
Mesmo com essas recomendações as escolas parecem não ter superado o modelo biomédico da Educação Sexual. Ainda hoje é muito presente na cultura escolar que assuntos relacionados a sexualidade devem ficar a cargo de professores e professoras de Ciências e Biologia, sempre por esse viés da prevenção, contracepção e reprodução. Abordagens que em geral reforçam padrões de cis-heteronormatividade e excluem a diversidade de corpos e identidades que não se enquadram nesse padrão.
Ao longo da década de 2000 o Governo brasileiro buscou ações de superação desses padrões mencionados. Parcerias do Ministério da Educação com Organizações Não Governamentais e grupos de apoio a causa de pessoas LGBTQIAPN+ levaram a iniciativas como o Escola Sem Homofobia. Tais inciativas buscavam formas de auxiliar professores da Educação Básica a trabalhar a diversidade e tratar das questões de gênero e sexualidade por um olhar mais abrangente, para além do viés biologizante ou biomédico. As ideias consistiam em implementação de materiais paradidáticos, diretrizes nos documentos norteadores da educação, atividades de formação continuada, entre outras.
Porém, quando tais ações ganharam visibilidade a contrapartida dos grupos conservadores foi de enorme repercussão. Se utilizando de muito sensacionalismo e desinformação, os conservadores atacaram veemente as iniciativas em desenvolvimento, criando falácias que foram assimiladas por parcela significativa da sociedade, como “ideologia de gênero” e distribuição de “kit gay” nas escolas. Todo esse cenário fez o Governo e as organizações recuarem e tais iniciativas nunca chegaram as escolas.
Foi esse cenário que me levou a pesquisar em minha tese sobre os impactos da ascensão conservadora na produção de teses e dissertações sobre gênero e sexualidade no Ensino de Biologia na última década no Brasil. Os resultados da pesquisa, recém defendida no Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde da UFRJ, demonstram que apesar das tentativas de censura nas escolas, pesquisadoras e pesquisadores estão empreendendo esforços para superar os padrões tradicionais. Boa parte das produções analisadas investigaram novas metodologias de ensino, formação de professores (inicial e continuada) e livros didáticos, muitos em busca de identificar o contexto atual e apontar caminhos possíveis para um Ensino de Biologia mais acolhedor com a diversidade.
Finalizo esse texto reiterando o seu subtítulo. Superar o modelo conservador segue sendo um desafio e o caminho para tal superação pode estar na maior integração entre o fazer escolar e a pesquisa. Como disse Carlos Chagas Filho “É porque se pesquisa, que se ensina” e é através da pesquisa que sustentamos argumentos em prol do que defendemos. A luta é árdua, mas enquanto a produção do conhecimento for livre, haverá esperança.